34 – A Caridade na Verdade também coloca o Homem perante a experiência do dom. O Homem, enquanto imagem e semelhança de Deus, foi criado para se dar. Tal facto, por vezes, é ensombrado por uma visão utilitarista do ser humano, segundo a qual a economia não carece de se subordinar à ética. Esta perspectiva utilitarista ignora o Pecado Original do Homem, que foi, precisamente, a presunção de ser auto-suficiente e de construir um mundo melhor apenas com base nas suas próprias forças, sem qualquer intervenção de Deus. Um mundo melhor e mais fraterno, apenas pode ser conseguido através da Caridade na Verdade, que não é mérito do Homem, mas doação de Deus. Por isso, a importância do dom. A economia deve (sem prejuízo do valor da Justiça) integrar também o princípio da Gratuidade.
35 – O Mercado é a “instituição económica que permite o encontro entre as pessoas, na sua dimensão de operadores económicos que usam o contrato como regra das suas relações e que trocam bens e serviços entre si fungíveis, para satisfazer as suas carências e desejos”. Todavia, o Mercado necessita de Solidariedade e de Confiança para funcionar devidamente. Como o Mercado não consegue criar, por si só, esta Solidariedade e esta Confiança, é necessário que ele se abra às energias morais de outros sujeitos, capazes gerar essa Solidariedade e essa Confiança. Não basta a Justiça Comutativa (que regula as relações económicas entre os sujeitos com base na equivalência dos bens e/ou serviços prestados), mas é necessária também uma Justiça Distributiva e uma Justiça Social. Assim, por exemplo, os países ricos não devem considerar os países pobres como um “fardo” mas devem compreender que eles próprios se beneficiam economicamente com a prosperidade dos países em vias de desenvolvimento (como o Papa Paulo VI alertava na encíclica Populorum Progressio).
36 – Portanto, o Mercado não pode, por si só, resolver os problemas sociais (nomeadamente os provocados pela globalização), principalmente se estiver subordinado a uma lógica mercantilista. Todavia, não nos podemos esquecer de que a economia é uma actividade profundamente humana e, logo, benéfica. Consequentemente, não é lícito cair no erro oposto de demonizar o Mercado. O Mercado é bom, mas não é um fim em si mesmo… é um meio, que pode ser deturpado por certas ideologias. É possível introduzir o princípio da Gratuidade no Mercado, sem desvirtuar o seu funcionamento.
37 – A Economia, em todas as suas fases, carece de Justiça porque a Economia, lidando com o Homem, possui sempre um valor moral. Com a globalização dos processos económicos, é cada vez mais difícil que a política assegure esta Justiça na economia, uma vez que a política permanece circunscrita a um dado espaço territorial. Como tal, é fundamental assegurar que o próprio desenrolar de todas as fases do processo económico é efectuado com Justiça. É necessário complementar a Justiça Comutativa com uma Justiça Política (ou seja, com leis justas e formas de redistribuição), não esquecendo a lógica do dom.
38 – Na encíclica Centesimus Annus, o Papa João Paulo II identificou três sujeitos no sistema social: o Mercado, o Estado e a Sociedade Civil, atribuindo a esta última a maior responsabilidade na economia da gratuidade. Hoje, sabe-se que a economia da gratuidade deve ser transversal a todos os três sujeitos. Por um lado, a Solidariedade (que significa que “todos se devem sentir responsáveis por todos”) não pode ser delegada apenas no Estado. Por outro lado, sem Solidariedade, não é possível haver Justiça (a Solidariedade não nasce espontaneamente a partir da Justiça). Por isso, é fundamental que o Mercado permita a participação económica em completa igualdade tanto das empresas privadas que buscam somente o lucro, como das empresas públicas, como ainda de empresas cuja produção é orientada para fins mutualistas e sociais. Caridade na Verdade significa fomentar estas últimas empresas que, sem negar a procura do lucro, visam ir mais além da lógica da troca de equivalentes. Quiçá, estas empresas poderão influenciar as outras, tornando mais visível e praticável a economia da gratuidade.
39 – É imprescindível criar uma economia verdadeiramente humana, em que “o progresso de uns não seja obstáculo para o progresso dos outros”. Neste sentido, é de notar que o Mercado apenas pode criar uma lógica de “dar para ter”, enquanto o Estado apenas pode criar uma lógica de “dar por dever”. Ambas são incompletas, fecham-se ao princípio da gratuidade e (se o Mercado e o Estado se puserem de acordo entre si com o único fim de preservarem as respectivas esferas de influência) irão erodir a Solidariedade na Sociedade Civil. “O binómio exclusivo Mercado-Estado corrói a sociabilidade”. É importante uma “progressiva abertura, em contexto mundial, para formas de actividade económica caracterizadas por quotas de gratuidade e de comunhão”, as quais têm origem sobretudo (mas não só) na Sociedade Civil.
40 – É necessária uma profunda mudança na forma actual de se conceber a empresa. O empresário não deve satisfações apenas aos accionistas da sua empresa, mas também aos trabalhadores, aos clientes, à economia envolvente e ao meio ambiente. Um exemplo paradigmático é o da deslocalização de empresas. Por vezes, tal leva em conta apenas os interesses dos accionistas, os quais não se encontram ligados a um único espaço territorial. Embora a deslocalização possa trazer um bem à empresa que não poderia ser obtido no local de origem, é imprescindível evitar a especulação (empobrecendo o país de origem onde foram produzidos os recursos, que então não têm retorno). E, tal como a deslocalização pode trazer bem ao país que recebe o investimento, é fundamental evitar a exploração. Deste modo, embora a deslocalização possa ser lícita, deve ser utilizada com um grande sentido de responsabilidade social.
41 – É preciso elaborar uma concepção do “espírito empresarial” que vá além da do empresário privado capitalista ou da do empresário público. Ou seja, o “espírito empresarial” deve transcender o binómio Mercado-Estado. Este “espírito empresarial” deve ter um significado polivalente e articulado com as diversas realidades. Na verdade, pode-se dizer que todo o trabalhador tem, intrinsecamente à sua actividade, um certo espírito empresarial.
De igual modo (e pelas mesmas razões) também o conceito de “autoridade política” deve ser polivalente e articulado com as diversas realidades, transcendendo o binómio Mercado-Estado. Esta autoridade política pode ser um elemento-chave em muitos países para solucionar a actual crise, mas é importante que esta se articule a nível das diversas instâncias locais, nacionais e internacionais. Além disso, esta autoridade política não deve monopolizar a solução da crise, porque vários agentes culturais, sociais e religiosos. Finalmente, a ajuda internacional não pode ser puramente económica, mas deve focar-se na consolidação do Estado de direito, bem como em instituições políticas e jurídicas que promovam o crescimento económico.
42 – A globalização não é uma realidade condicionada por forças anónimas ou deterministas, mas é a expressão de uma actividade humana: a tentativa da reunião da família humana no sentido de criar um maior bem para todos. Portanto, é um erro tão grande opor-se cegamente à globalização, como apoia-la cegamente. A globalização não é boa nem má em si mesma… a bondade ou a maldade da globalização depende do que se fizer dela. A globalização tanto pode ajudar na redistribuição da riqueza, como da pobreza. Tanto pode ser usada com objectivos egoístas e utilitaristas, como de forma ética e responsável. Uma boa globalização é orientada pela Caridade na Verdade.
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