Era uma vez, numa terra muito semelhante à nossa, dois canários. Eram aves de penugem muito bela. As suas cores exibiam a perfeição da Criação em toda a sua glória. Todo o seu corpo estava perfeitamente desenhado para uma das suas verdadeiras vocações: voar. E as suas gargantas, por sua vez, produziam aquela melodiosa harmonia, que constituía outra das suas grandes vocações: cantar... encerrar num breve trinar todo o sentido do Universo.
Acontece que estes canários não viviam felizes.
Desde que eram uns pequenos ovos, lançados inclementemente na Existência, haviam sido encerrados numa apertada gaiola por um velho muito mau, que gostava de enfeitar a sua mansão com os pássaros que aprisionara. Tal destino fora partilhado pela sua mãe e, invariavelmente, por todos os antepassados de que se pudessem lembrar. Nessas gaiolas, os nossos pequenos heróis não podiam voar e o seu canto era cinzento e insípido.
Um dia, apareceu um menino. Chamava-se Emanuel e tinha muito bom coração. Muitas vezes, quando passava pela mansão do velho, este menino condoía-se dos pássaros que via encerrados nas gaiolas, cujas sombras se insinuavam por entre as janelas. Por isso, Emanuel invadia muitas vezes o território do velho para libertar alguns prisioneiros. Naquele dia foi a vez dos canários.
Emanuel entrou, muito de fininho, para que ninguém se apercebesse da sua entrada, excepto os próprios que se iriam beneficiar da liberdade. Abriu a porta da gaiola. Imediatamente os canários esvoaçaram para o cimo de um armário que havia ali ao pé. Emanuel apontou-lhes um objecto esquisito e disse:
- Usem aquilo! Usem aquilo se querem ser livres!
Entretanto, o velho apareceu e deu uma sova valente em Emanuel. Mas este não se importou. Suportou valentemente as dores porque sabia que o seu sacrifício não seria em vão se tivesse conseguido salvar os canários. Depois, ambos saíram do quarto onde se encontravam.
Ora os canários não percebiam muito das coisas humanas. Eram demasiado vastas e grandiosas para as suas cabeças pequeninas. Mas conseguiram perceber as intenções benévolas de Emanuel quando este apontou para o objecto. Ora este objecto assustava os canários porque era rectangular como a sua gaiola original e brilhava com uma intensidade tal que cegava.
- Vamos! - disse um canário.
- Vamos onde? - replicou o segundo.
- O menino disse que, se queríamos ser livres, deveríamos usar aquele objecto!
- O quê? Acabaste de sair de uma gaiola e já te queres meter noutra?
- Mas... mas se fosse uma gaiola o menino não teria dito que...
- Se calhar ele apenas nos quer engaiolar, na vez do velho!
- Não acredito que alguém que se sacrificou tanto para nos libertar quisesse apenas engaiolar-nos de novo!
- Pois, mas de qualquer forma, que importa? Já estamos livres, não é?
- Será?
- Então, não vês? Olha só este lugar! Está cheio de coisas bonitas!
De facto, a casa do velho, embora sombria, tinha muitos móveis e bugigangas cuja riqueza dourada e púrpura seduzia qualquer um que se perdesse a contemplá-las. Sobre uma mesa havia uns chocolates. Disse o segundo canário:
- Vês? Até tem comida! E é a mais deliciosa que eu já comi! Agora que fomos libertados, podemos viver como reis! Agora esta mansão é nossa! Por que nos haveremos de arriscar a seguir umas instruções cujo resultado é incerto quando tudo isto está à nossa imediata disposição?
- Não sei... mas vou arriscar!
Dito isto, o primeiro canário voou rumo ao objecto estranho, enquanto o segundo permaneceu no topo da mesa. O canário que permaneceu em casa em breve acabou os chocolates e ficou demasiado gordo para voar. As coisas brilhantes e preciosas não lhe valeram. Em boa verdade, ele estava ainda preso, porque a mansão nada mais era do que uma grande gaiola. O velho viu-o e encerrou-o novamente numa gaiola pequena até ao fim dos seus dias.
Quanto ao primeiro canário, safou-se. O objecto rectangular e brilhante não era uma gaiola, era uma janela. Deste modo, ele ganhou o Céu infinito, onde pôde voar e cantar para sempre!
Autor: Alma Peregrina.
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