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Ano da Fé

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domingo, 11 de julho de 2010

OS CAIXÕES COM ARMAS

Um artigo obrigatório publicado no Jornal Público e no blog Blasfémias e comentado pelo blog Logos.

"A história é breve e leva-nos ao Portugal de Julho de 1975. O país declarava-se em processo revolucionário e o MFA desvalorizava o resultado das eleições burguesas, contrapondo-lhe a dinâmica da luta de classes. A Igreja Católica não tinha muitas ilusões sobre o que se seguiria, mas a habitual passividade da elite católica portuguesa, a par do receio de se ver conotada com o reaccionarismo, ia deixando os responsáveis eclesiásticos numa expectativa cada dia menos tranquila, mas muito tolhida.

Estava o país nestes transes quando o então bispo de Aveiro, Manuel de Almeida Trindade, se deslocou a Roma. Aí, num encontro com outros bispos, foi dando conta, no tom moderado, quase tímido, que dizem ter sido o seu, do que se passava em Portugal. Fosse por que tanta moderação lhe deu que pensar ou por qualquer outra razão, um dos bispos presentes perguntou ao bispo português se a Portugal já tinham chegado os caixões com armas. Ou seja, se os sectores não comunistas não só já tinham sido acusados de conspirar contra a revolução como de nessa actividade conspirativa terem perdido o respeito pelos mortos, transportando armas em caixões. O bispo de Aveiro respondeu que sim, que de facto os caixões com armas, ou, melhor dizendo, o boato acerca deles, já chegara a Portugal. Ao que o bispo que o interrogara lhe disse peremptoriamente “VÁ PARA A RUA JÁ!”

O homem que tão aguerrido conselho deu ao bispo de Aveiro chamava-se Karol Wojtyla e sabia por experiência própria que a acusação dos caixões com armas era recorrente em todos os processos de conquista do poder pelos partidos comunistas e que seria isso que ia acontecer em Portugal, caso os democratas, e entre eles os católicos, não fossem para a rua defender as suas posições.

Independentemente de Karol Wojtyla ter ou não operado os milagres que aos olhos dos católicos o podem tornar santo, era certamente um homem de grande intuição política e um orador dotado de invejáveis dotes de persuasão, pois a verdade é que o bispo de Aveiro, uma vez regressado a Portugal, se deixou de reservas e foi mesmo para a rua: a 13 de Julho de 1975 teve lugar em Aveiro a grande “Manifestação dos Cristãos” e desde essa data o bispo de Aveiro e boa parte dos dirigentes católicos não mais saíram da rua até Novembro de 1975. As manifestações de católicos repetiram-se em Coimbra, Lamego, Leiria e Braga, tornando-se evidente que a Igreja não estava com o MFA e muito menos com a revolução.

Nos últimos tempos tenho-me lembrado não dos caixões com armas propriamente ditos, se é que eles alguma vez existiram, mas daquilo que eles representam enquanto recurso da agitação e propaganda: um inimigo imaginário que todos os dias é invocado para manter o povo em constante frenesi. Este, entretido nessa verdadeira caça aos gambuzinos, não tem tempo ou sequer a possibilidade de reflectir na catadupa de actos que estão a ser praticados por aqueles que detêm o poder. Vistos à distância, seja esta distância temporal, como acontece com o PREC, ou geográfica, veja-se o caso das diatribes de Chavez na Venezuela, estes procedimentos de agitprop são sempre óbvios e patéticos. Mas para quem vive imerso neles é como se não houvesse tempo ou disponibilidade para mais nada.

Em 1975, em Portugal, faltavam bens essenciais, os serviços públicos funcionavam nos intervalos das greves, a tropa levava o dia em plenários, milhões de cidadãos com nacionalidade portuguesa andavam às voltas em África, mas nada era mais importante que correr atrás dos fascistas. E todos os dias se vislumbravam mais fascistas, pese há meses não se fazer mais nada senão combater os fascistas.

Em 2010, os caixões com armas continuam a andar por aí. Agora não estão ao serviço do capital, pois o socialismo de Estado que nos rege precisa desesperadamente que a actividade privada pague os impostos indispensáveis quer à manutenção da mitologia do Estado providência, quer à prosperidade da oligarquia que faz negócios, gere e manda como se o Estado fosse coisa sua. Neste PREC contemporâneo a igualdade nos bens materiais não é assunto que mobilize as massas, até porque estas foram percebendo, à sua dolorosa custa, que quanto mais igualdade lhes prometem, mais pobres ficam. O homem novo pode ser pobre ou rico, tudo depende da sua relação com o Estado e não com o capital. O desígnio da igualdade transferiu-se do capital para o corpo. E neste novo campo de batalha todos os dias há uma desigualdade que urge exterminar: a humanidade deixou de se dividir nos desigualíssimos homens e mulheres para passarmos todos a pessoas.

Portugal levou os últimos meses pendente desse enorme combate que foi o do fim da desigualdade dos homossexuais que não se podiam casar. Agora que se celebrou o extraordinário cômputo de 18 casamentos entre pares homossexuais já nos foi anunciado que vai ser atacada a enorme desigualdade que recai sobre os casais homossexuais ao não se lhes permitir que se altere a filiação das crianças de modo a que estas tenham dois pais ou duas mães. Como boa parte deste nosso PREC actual é decalcado do espanhol, nomeadamente a governamentalização e controlo pelos partidos socialistas no poder em ambos os países das associações que dizem combater as desigualdades, não é muito difícil perceber o que aí vem: sob o lema da Diversidade Afectivo-Sexual a disciplina de Educação Sexual vai ser palco de inúmeras polémicas nas escolas sobre o modelo de família que se deve apresentar às crianças. Como os tempos vão de crise não teremos por enquanto cursos de masturbação para adolescentes como aconteceu em Espanha, por sinal numa das zonas mais pobres daquele país e em que o desemprego entre os jovens atinge os valores estratosféricos de 44 por cento. Mas teremos certamente uma enorme atenção às pessoas transgénero que agora se descobriu que devem poder mudar de género por via administrativa.

Nada disto se traduz em mais direitos ou mais respeito para com estas pessoas, pela mesma razão por que também não acabámos um país rico em 1975: o que se pretende não é melhorar a vida das pessoas. É sim servir-se delas como se torna óbvio quando alguém um dia cansado de tanta palermice diz em voz alta aquilo que muitos sussurram. Foi isso que aconteceu há 35 anos. Em Novembro de 1975, estávamos nós naquele nunca mais acabar de fascistas, quando o almirante Pinheiro de Azevedo, ao ser apelidado fascista pelos operários que cercavam a Assembleia Constituinte, também ela cheia de deputados ditos fascistas, se saiu com aquele grito de alma do “badamerda mais o fascista” que deu conta do cansaço de um país onde os fascistas eram ainda mais raros que o bacalhau e o leite, mas onde a troco de tudo e de nada se era chamado fascista. Quando, semanas depois, um golpe militar mandou as armas para os quartéis, as pessoas para casa e os caixões para os cemitérios, o que nos sobrava era um país cheio de gente desejosa de levar uma vida normal e de ser governada por quem se preocupasse em assegurar um futuro melhor ao país e ao povo.

Quando acabar o presente frenesi do combate à desigualdade, à homofobia e a todas as outras fobias e ismos que nos capturam o tempo e a atenção, o que sobrará? Infelizmente não creio que desta vez vá ser tão fácil quanto em 1975. As pessoas e os países recuperam muito rapidamente das convulsões que põem em causa os bens materiais. O mesmo não se pode dizer das medidas de engenharia social que afectam a família.

As crianças que agora andam para aí quais pioneiros na capa da Vida Soviética a ilustrar as maravilhas de terem dois pais, duas mães, apenas pai ou apenas mãe, a serem exibidas no Arraialito Gay e nas capas das revistas como sinal exterior das circunstâncias de vida de quem lhes chama suas como se fossem objectos, um dia vão perguntar-nos o que andávamos a fazer neste início do século XXI. Tanto quanto se sabe, estes ajustes de memória causam dores muito superiores aos de qualquer PREC e não costumam sequer dar histórias que gostemos de ouvir e muito menos de contar."

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