Pouco depois deste meu post sobre a usura, estalou uma polémica envolvendo Isabel Jonet, a presidente do Banco Alimentar Contra a Fome.
Aqui estão as palavras da polémica:
Imediatamente a Esquerda se insurgiu contra estas palavras, até ao ponto de exigirem a sua demissão. Porquê? Em primeiro lugar, porque não eram os pobres, mas sim a juventude burgueso-marxista consumista de iPods que era o verdadeiro alvo das críticas de Isabel Jonet... e eles perceberam-no bem. Em segundo lugar, porque a Esquerda tem aversão à caridade (já Marx afirmava que "uma esmola era um dia adiado para a Revolução"), essa virtude do Cristianismo, que é religião que eles abominam. E em terceiro, porque a Esquerda tem que estar sempre a insurgir-se contra alguma coisa, está-lhes no ADN.
Claro que a Direita não ficou atrás na irracionalidade da Esquerda, como lhe é próprio. Defenderam Isabel Jonet (e bem!), mas aproveitaram para canonizar de arrasto o banqueiro Fernando Ulrich. Ou seja, comparam uma senhora que dedicou a sua vida ao combate à pobreza com um dos agentes económicos que fomenta o sistema económico usurário que está na base dessa pobreza. Um homem que, não tendo provado qualquer austeridade, se acha no direito de dizer aos portugueses que "ai aguentam, aguentam" mais austeridade.
Agora, é preciso separar o trigo do joio.
Não é preciso defender a austeridade para concordar com Isabel Jonet.
E não é preciso defender Ulrich para defender Jonet.
Na verdade, se virmos bem, as palavras de Isabel Jonet são uma das críticas mais mordazes a Ulrich et al.
Antes de mais, devo dizer que as palavras de Isabel Jonet não foram as melhores. Os pensamentos dela eram muito profundos e acertados, mas não os expressou da melhor forma. Além disso, não concordo com tudo o que a senhora diz, nem com todas as ideias que ela defende. O meu post será pura e simplesmente sobre as "palavras da polémica".
Posto isto, devo justificar-me. Por que motivo ataco a austeridade, mas defendo as palavras de Isabel Jonet? Por que ataco o sistema económico usurário, mas defendo quem parece que está a defender as medidas desse sistema?
Para responder a essa pergunta, devo fazer uma distinção importante.
A distinção entre austeridade (que eu ataco)...
... e simplicidade (que eu defendo e que Isabel Jonet defendeu).
Se Jonet tivesse feito esta distinção tinha, à partida, evitado muitos dissabores.
1) "Gastamos mais do que as nossas possibilidades"
Quem leu o meu post, vê que eu ataquei o "mitogma" segundo o qual nós, enquanto Estado, gastamos mais do que as nossas possibilidades.
Mas lerá também que eu desmantelo a analogia grosseira que compara a economia do Estado à economia de uma família.
A diferença: a economia do Estado foi desenhada especificamente para perpetuar a dívida. Se o Estado não contrair dívida aos bancos (com juros), então a economia nacional pára. Pura e simplesmente, pára. A economia do Estado está numa dependência doentia à dívida aos bancos.
Mas a economia familiar não é assim. A economia familiar é baseada no princípio são segundo o qual se deve gastar menos do que aquilo que se ganha. Aliás, eu critico a economia do Estado precisamente por não ser uma economia de tipo familiar, em que as dívidas são pagáveis.
É verdade que as famílias também foram sujeitas a empréstimos usurários. Nesses casos, a moratória da dívida também se deve aplicar a elas. Sem dúvida.
Mas também é verdade que as famílias não têm o "cordão umbilical" que o Estado tem. A economia da família não está intrinsecamente ligado à dívida ao banco. Uma família não precisa de estar continuamente a contrair dívidas ao banco para que a economia familiar funcione.
E é verdade que as famílias portuguesas são das que mais se endividaram na Zona Euro. O que nos leva ao segundo ponto.
2) Consumismo e Austeridade: 2 faces da mesma moeda
As famílias portuguesas estão super-endividadas. Mas porquê? Simplesmente porque nos últimos 30 anos, os bancos impingiram-lhes a miragem do crédito fácil:
"Não pode pagar isto? Não há problema! Paga em prestações!"
Isto gerou um bem-estar material sem precedentes. Sem dúvida. Mas também gerou uma mentalidade materialista, hedonista e consumista. E foi essa mentalidade que "educou" os jovens de hoje, incapazes de diferenciar entre necessidades e luxos. Uma geração à sombra da gratificação imediata.
Foram esses jovens que Isabel Jonet criticou. Não os verdadeiros pobres.
São esses jovens que acreditam que comer bifes todos os dias é um direito humano. São esses os que querem ir a um concerto de rock, mesmo quando só têm dinheiro para pagar uma radiografia. Peço ao benévolo leitor que veja o vídeo e diga se não é isso que ela disse.
Quanto a Ulrich, ele encarna a instituição bancária. A instituição que fomentou o crédito. A instituição que gerou este consumismo materialista e hedonista. A instituição que, agora, é a causa da austeridade.
Jonet defendeu a simplicidade. Ulrich abomina a simplicidade, sem a qual não teria lucros.
Ulrich defende a austeridade. Mas a austeridade vem da simplicidade? Não, vem do consumismo! Que Ulrich defende!
Como posso defender Jonet e criticar Ulrich, perguntais vós?
Como posso proceder de outro modo? - digo eu.
3) Necessidades e Luxos
Isabel Jonet defendeu a simplicidade.
Ela disse: se só houver dinheiro para uma radiografia, não se deve gastar num concerto de rock.
O concerto de rock é um luxo. Ninguém morre por falhar um concerto de rock.
Uma radiografia é necessária para a saúde. É uma necessidade.
Ela disse: se não se tiver dinheiro para comer bifes todos os dias, não se deve comer bifes todos os dias.
Comer bifes não é uma necessidade. Existem outras comidas mais baratas (E não, não me refiro a papas Nestum!)
Mas a austeridade não tem nada a ver com luxos.
A austeridade gera desemprego. Um emprego não é um luxo (por muito que os capitalistas nos queiram fazer crer do contrário). Um emprego é uma necessidade, porque uma pessoa sem emprego não é auto-suficiente, não é capaz de prover o seu próprio sustento, não é capaz de constituir uma família, não é capaz de se auto-realizar, não é capaz de contribuir para o Bem Comum.
A austeridade gera pobreza para os mais vulneráveis. Os reformados, as crianças, os doentes... Estes é que causaram o aumento das papas Nestum de que a jornalista falou. Esses não têm luxos! Têm necessidades.
4) O exemplo
Finalmente, há a questão do exemplo. Que a mim, me parece de extrema importância.
Ulrich disse aos portugueses: "ai aguenta, aguenta".
Ulrich acha que os portugueses aguentam mais austeridade.
Mas, Ulrich já deu o exemplo?
Ulrich já cortou nos seus luxos?
Já provou, ele próprio a austeridade?
Já fez algum corte no seu modo de vida? E não, não me refiro a cortezinhos simbólicos! Refiro-me a cortes que o coloquem num patamar semelhante aos dos portugueses a quem ele diz para "aguentarem".
Isabel Jonet, por seu lado, fez uma confissão pessoal.
Falou nos seus próprios filhos, falou em como eles lavam a escova dos dentes com água corrente, em vez de no copo.
Assumiu-se, ela própria, como parte do problema.
Coisa que Ulrich jamais fez.
Isabel Jonet é dirigente de uma IPSS. Ou seja, coordena um movimento da própria sociedade para ajudar os mais desfavorecidos. Uma organização descentralizada, não governamental. Assim sendo, Jonet liberta recursos do Estado. Ela ajuda a resolver a actual crise económica.
Ulrich é dirigente de um banco. E os bancos, além de serem a causa da actual crise económica... ainda pedem bail-outs ao Estado quando estão prestes a entrar em falência por causa das suas especulações. Os bancos são subsidiodependentes do Estado, onerando-o ainda mais. Depois ainda têm a lata de defender o Mercado Livre.
Isabel Jonet fala com conhecimento de causa. Fala de realidades que ela conhece.
Ulrich fala do alto do seu trono de marfim, intocável e implacável, manipulando pessoas como se fossem números.
***
Vamos ter de empobrecer? Sim, vamos! Mas não à custa de austeridades injustas, cruéis e usurárias! A essas, opôr-me-ei sempre, enquanto me restar um fôlego de consciência cristã!
Talvez a palavra certa não seja "empobrecer". Vamos ter, isso sim, de nos tornar mais simples.
Quando o fizermos, reconheceremos os verdadeiros valores da vida. Aqueles que trazem a verdadeira felicidade. Aqueles que deitámos fora outrora, porque eram "antiquados" e "retrógrados".
Nesses dias deixaremos, talvez, de ter de labutar tanto para "ter" e, assim, teremos mais tempo para "ser". Nesses dias deixaremos de ser escravos de bancos, troikas, burocratas e outros senhores engravatados. Nesses dias, haverá poucos luxos... mas as necessidades estarão asseguradas.
Nesses dias, este "jardim à beira-mar plantado" deixará de ser um deserto espiritual, mas estará repleto daqueles "lírios do campo" de que o Mestre nos falou. Venha a nós o Seu Reino, o d'Ele que foi o mais humilde de todos os homens.
Entretanto, peço aos meus leitores que continuem a contribuir para o Banco Alimentar Contra a Fome. Mesmo que discordem das palavras de Isabel Jonet, não devem impedir que as ideias pessoais de um dirigente obscureça todo o trabalho meritório que esta IPSS tem vindo a desenvolver. Nem seria justo que os pobres fossem penalizados pelas palavras de Jonet...
Porque um boicote ao Banco Alimentar só penalizaria os pobres.
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