Costumo socorrer-me do seguinte exemplo: é muito fácil erradicar o VIH/SIDA da face da Terra. Basta matar todos os seropositivos, convencionando-os como não-humanos. Mas isso é claramente errado. De igual modo, não é ético salvar um indivíduo necessitado de um transplante, matando um outro indivíduo que, embora compatível, se encontre inscrito no Registo de Não-Dadores.
Mas as questões não são puramente éticas. Apesar do entusiasmo (imerecido) que as hESCs ("human embryonic stem cells", i.e. células-tronco embrionárias humanas) têm suscitado nos media e na comunidade científica, a verdade é que têm sido verdadeiros "abortos". Promessas na cura da diabetes, esclerose múltipla, Alzheimer... tudo falhou. Além de terem um efeito secundário grave: células indiferenciadas malignizam facilmente, induzindo tumores e cancros. Há sempre ensaios a decorrer, estão há anos a dizer "agora é que é, agora é que é!", mas... nada...
Pelo contrário, as células-tronco adultas, derivadas de medula óssea ou de sangue do cordão umbilical são perfeitamente éticas, porque são recolhidas da própria pessoa que beneficia do tratamento, sem a destruir.
Ao contrário das hESCs, as ASCs ("adult stem cells" i.e. células-tronco adultas), têm produzido benefícios tangíveis. Veja-se aqui, aqui, aqui e aqui, só para se ter alguns exemplos. Além de serem mais seguras, já que não malignizam.
É verdade que as ASCs são mais diferenciadas que as hESCs, pelo que, teoricamente, não se conseguirão diferenciar em todos os tecidos do corpo (ao contrário das hESCs). Isto faz com que os cientistas continuem a rejeitar as ASCs e a preferir as hESCs, apesar de as ASCs serem éticas e serem as únicas com resultados até agora.
Após esta introdução, é possível dizer que há um terceiro tipo de células-tronco: as "induced pluripotent stem cells" - iPSCs.
As iPSCs são células adultas que foram forçadas a "regredir", ou seja, a tornarem-se mais embrionárias. Tornando-se menos diferenciadas, é possível obter todos os benefícios das células-tronco embrionárias, sem destruir embriões.
Foi pela descoberta das iPSCs que os doutores Gurdon e Yamanaka ganharam o Prémio Nobel da Medicina e da Fisiologia de 2012. E este facto tem sido saudado pelos meios católicos como um grande breakthrough na investigação ética das células-tronco.
MAS ATENÇÃO!!!
É que, para produzir estas iPSCs foi necessário recorrer a um vírus, o qual foi replicado com o auxílio de células-tronco embrionárias. Veja-se o artigo da revista Cell, na secção "Experimental procedures", subsecção "Cell culture".
É verdade que nenhum embrião foi destruído explicitamente para produzir as iPSCs. As células-tronco embrionárias utilizadas já existiam em cultura há muitos anos, derivadas de um aborto electivo ocorrido na década de 1970 (ver pág.s 80-81 deste paper).
Mas o facto de o embrião não ter sido destruído explicitamente para produzir as iPSCs (o embrião já tinha sido destruído há muito tempo), não justifica o facto de as iPSCs usarem material biológico de um embrião abortado. É possível que se aplique o mesmo princípio ético que eu mencionei acima... não é lícito obter transplantes a partir da destruição de terceiros. Um médico não poderia transplantar um órgão de um indivíduo especificamente morto para o efeito, mesmo que a morte desse indivíduo já tivesse ocorrido.
Ou, como a doutrina bio-ética da Igreja define na instrução Dignitas Personae:
"Uma situação diferente verifica-se, quando os investigadores empregam «material
biológico» de origem ilícita, que foi produzido fora do seu centro de
investigação ou que se encontra no comércio. A Instrução Donum vitae
formulou o princípio geral, a observar nestes casos: «os cadáveres de embriões
ou fetos humanos, voluntariamente abortados ou não, devem ser respeitados como
os restos mortais dos outros seres humanos. De modo particular, não podem ser
objecto de mutilação ou autópsia se a sua morte não for assegurada e sem o
consentimento dos pais ou da mãe. Além disso, deve-se sempre salvaguardar a
exigência moral de que não tenha havido nenhuma cumplicidade com o aborto
voluntário e que seja evitado o perigo de escândalo».
A tal propósito, não basta o critério da independência
formulado por algumas comissões éticas, ou seja, afirmar que seria
eticamente lícita a utilização de «material biológico» de proveniência ilícita,
sempre que exista uma clara separação entre os que produzem, congelam e fazem
morrer os embriões e os que investigam a evolução da experimentação científica.
O critério de independência não basta para evitar uma contradição na atitude de
quem afirma não aprovar a injustiça cometida por outros e, ao mesmo tempo,
aceita para o seu trabalho «material biológico» que outros obtêm mediante
semelhante injustiça. Quando o ilícito tem o aval das leis que regulamentam o
sistema sanitário e científico, há que marcar distância dos aspectos iníquos do
sistema, para não dar a impressão de uma certa tolerância ou aceitação tácita de
acções gravemente injustas. Isso, de
facto, contribuiria para aumentar a indiferença, se não mesmo o favor, com que
tais acções são vistas em certos ambientes médicos e políticos.
Às vezes, objecta-se que as considerações precedentes parecem
pressupor que os investigadores de recta consciência teriam o dever de se opor
activamente a todas as acções ilícitas realizadas no âmbito da medicina,
alargando assim excessivamente a sua responsabilidade ética. O dever de evitar a
cooperação com o mal e o escândalo, diz respeito, na realidade, à sua actividade
profissional ordinária, que devem equacionar rectamente e mediante a qual devem
testemunhar o valor da vida, opondo-se também às leis gravemente injustas.
Portanto, o dever de recusar o referido «material biológico» – mesmo na ausência
de uma certa relação próxima dos investigadores com as acções dos técnicos da
procriação artificial ou com a dos que praticaram o aborto, e na ausência de um
prévio acordo com os centros de procriação artificial – resulta do dever
de, no exercício da própria actividade de investigação, se distanciar de
um quadro legislativo gravemente injusto e de afirmar com clareza o valor da
vida humana. Por isso, o critério da independência acima referido é
necessário, mas pode ser eticamente insuficiente."
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(Mais um artigo interessante sobre o assunto encontra-se aqui)
Isto é tanto mais grave, quando certos investigadores nesta área (e que colocam as preocupações bio-éticas na dianteira do seu trabalho) afirmam que as iPSCs poderiam ser obtidas sem recurso às hESCs, mas às próprias ASCs. Embora desconheça se isso é verdade, não vejo porque motivo terão de ser utilizadas hESCs para cultivar o vírus que produz as iPSCs.
O debate ético em torno desta questão ainda não está, obviamente, encerrado. Mas parece estar inclinado contra as iPSCs. Pelo menos enquanto não se encontrarem alternativas às células embrionárias para produzir iPSCs (o que, penso, não demorará muito a surgir). Portanto, para já, um católico com as devidas preocupações bio-éticas deve manter uma distância prudente das iPSCs, até que a Igreja Católica se possa pronunciar, após um debate sereno e sem viéses.
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