A propósito do meu post "
Como aumentar a produtividade nacional?", um dos meus amigos do facebook (que, de resto, sempre mereceu e merece o meu respeito) interpelou-me como se este meu post contivesse um apoio tácito à Função Pública e, por extensão lógica, à Greve Geral de hoje.
Em primeiro lugar, gostaria de deixar bem claro que aquilo que eu escrevo é aquilo que eu escrevo e nada mais. Quando quero escrever algo, eu escrevo. Se escrevi sobre os horários laborais (quer do público, quer do privado) e sobre o desemprego, é porque queria falar sobre desemprego e horários laborais (quer do público, quer do privado). Se eu quisesse escrever sobre greves e Função Pública, escreveria sobre greves e Função Pública.
Que é o que eu vou fazer agora.
Em primeiro lugar, gostaria de deixar claro que a Greve é um mecanismo de defesa perfeitamente legítimo, tendo sido a Igreja Católica uma das primeiras instituições a reconhecer a sua validade (vide
§ 2435 do Catecismo).
Em segundo lugar, gostaria de apresentar aos meus leitores o conceito de Solidarismo, uma teoria de organização social formulada por um dos maiores pensadores da Doutrina Social da Igreja, o Padre Heinrich Pesch. Para simplificar, digamos que o Solidarismo acentua a interdependência entre os diversos sectores sociais, em vez de acentuar o atrito entre eles (como o fazem as demais ideologias modernas). Deste modo, a cooperação é mais forte e importante do que o mero conflito.
Por exemplo, a luta de classes. Só a expressão "luta" é profundamente antisolidarista, como se existisse uma guerra no seio de uma sociedade. O Comunismo nasceu precisamente deste conceito. E cresceu à conta de se alimentar dessa tal luta de classes, colocando-se do lado do proletariado. Mas o Capitalismo não está isento de culpas... ainda hoje vemos os capitalistas a usarem o Estado para sobrecarregarem os trabalhadores e aliviarem ao máximo o capital. Referem que fazê-lo vai aumentar o investimento e, por conseguinte, produzir riqueza.
Um solidarista olha para estas perspectivas e vê nelas um completo disparate. Ao comunista diz que os trabalhadores não conseguem sobreviver sem o investidor que lhes paga os salários e que legitimamente está na posse dos meios de produção. Ao capitalista diz que capital sozinho não produz riqueza e que, portanto, o trabalhador tem o direito à sua justa parte nos lucros da empresa.
O rico deve ajudar o pobre. O pobre deve manifestar gratidão ao rico que o ajuda.
Veja-se também a questão da "guerra dos sexos" que o Feminismo propaga por aí. Lá está "guerra" outra vez! Acaso a mulher é alguma coisa sem o homem? Acaso o homem pode algo sem a mulher? Não foram eles concebidos para se entreajudarem, colaborarem, amarem-se mutuamente? Quando o fazem, não se gera imediatamente uma sociedade em miniatura, chamada Família? Não é aí que as pessoas nascem e são educadas, aprendendo com seus pais os verdadeiros pilares da Sociedade, que são solidários?
Deste modo, em relação à Greve Geral, fico entristecido por ver nela uma fonte de conflito, uma ferida que divide a nossa sociedade. Os funcionários privados ficam ressentidos e aproveitam a ocasião para desacreditar os funcionários públicos como uma cambada de privilegiados, pagos pelos impostos de todos, que reclamam sem motivo. Os funcionários públicos ficam ressentidos, o que os acirra ainda mais para lutarem mais, para não terem de prestar contas a quem demonstra tanta incompreensão. Para quê ter a fama sem se ter o proveito? De parte a parte, luta, guerra e conflito.
O solidarista vê nisto um sinal patológico. É uma sociedade sem futuro, porque não é capaz de atravessar uma crise. Não pelo menos sem achar que uma qualquer parte da sociedade deva ser sacrificada em prol do Maior Bem. Mas como se pode resolver uma crise desta maneira? Não são os sacrificados também parte dessa sociedade em crise? Não merecem eles também sair da crise? Pois é daqui que provém o conflito. Perdeu-se a noção de Bem Comum, a qual foi substituída pelo critério do Maior Bem... ou pelo critério da soma comum de vários Bens Individuais que nunca estarão em perfeita consonância.
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Podemos discordar àcerca do papel do Estado na Sociedade. Podemos discordar àcerca da parcela de funções que deve caber à Função Pública e à Função Privada. Mas, de um ponto de vista solidarista, devemos compreender que o país precisa de ambas. Logo, os funcionários privados necessitam dos funcionários públicos (como a paralisação actual quer demonstrar). E os funcionários públicos necessitam dos funcionários privados, que também apresentam várias privações e que também sofrem várias injustiças laborais.
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Deste modo, creio que a Greve Geral, tal como está organizada, é contraproducente, mesmo para os próprios grevistas. Enquanto os laços que nos unem a todos não forem repostos, este tipo de intervenção apenas vai aumentar o descrédito naqueles que protestam (que até têm razão em muita coisa que afirmam e reinvidicam). E, ainda para mais, uma greve de um dia só nunca será suficientemente eficaz, mesmo do ponto de vista do conflito puro e duro.
Será necessário reinventar o conceito de Greve? Penso que sim, embora eu próprio não saiba muito bem como o fazer...
Estive a pensar que, talvez fosse interessante que cada funcionário público escrevesse a sua história e a imprimisse em vários panfletos. Que mostrasse como as medidas de austeridade afectam a sua vida. Que explicasse o motivo por que os seus préstimos são úteis a toda a sociedade. Que tentasse refutar os preconceitos que vê todos os dias a serem lançados contra ele(a).
Depois, todos os panfletos seriam distribuídos activamente à porta de cada serviço público. Apenas os distribuidores faltariam ao trabalho. Os restantes cumpririam o seu horário, manifestando exteriormente um sinal visível (um pin, por exemplo) que significasse algo do género: "Veja, veja que, apesar das circunstâncias em que me encontro, eu vim trabalhar, para o servir, POR SI!"
De igual modo, poderiam ser afixados letreiros nos locais de trabalho dizendo: "Já imaginou se não estivéssemos aqui? Por favor, ajude-nos também!"
No final da jornada de trabalho, os funcionários deveriam então sair à rua e manifestar-se em massa. Porventura organizar vigílias. Todos aqueles que, tendo lido os panfletos, se solidarizassem com eles deveriam ter o dever de se juntar a eles.
Não sei se tal "greve" teria sucesso... As entidades empregadoras (sobretudo as estatais) possuem directivas anquilosadas que parecem impermeáveis a qualquer tipo de greve (seja a convencional, seja aquela que eu postulei).
Mas este novo tipo de greve teria, pelo menos o mérito, de tentar repôr os laços que se romperam. De dissipar preconceitos. De não prejudicar ninguém. De envolver todos na solução da nossa crise colectiva.
Até lá, insto todos os meus leitores a não colocarem todos os membros de um dado grupo no mesmo saco. A lerem as reivindicações dos grevistas com espírito sereno e a julgá-las com mente aberta. (o que não significa concordar com elas). E, sobretudo, a não alimentarem maniqueísmos ou dualismos patológicos, que transformem Portugal num campo de batalha onde "nós" e "eles" perpetuamente se digladiam pelos recursos existentes.